Wednesday, November 25, 2015

Dona Francisca

Não se sabe onde nasceu D. Francisca mas, presumimos sempre que terá sido para os lados de Caxias. Não a Caxias da Prisão nem do Estado Novo, mas a Caxias das Vivendas e da vista sobre o Tejo.
Quando a D. Francisca foi encontrada não sabiam que idade teria mas, seria uma criança e, naquele tempo de tantos pudores, não verificaram se D. Francisca seria mesmo uma menina. Tal facto só viria a ser conhecido quando D. Francisca foi levada ao médico para que fosse observada e se concluiu que se tratava de uma jovem donzela. Foi nesse dia que a D. Francisca foi rebatizada e recebeu a graça que ainda hoje possui
.
Os primeiros tempos de D. Francisca foram passadas numa casa em Lisboa, na companhia de uns dos membros do casal que a recolheu e a tomou como sua. Mal saberiam eles que Dona Francisca os tinha tomado como dela, em vez da crença geral. O membro desse casal à época padecia de uma pequena enfermidade de fácil mas demorado tratamento. Assim, durante esses primeiros tempos, faziam companhia um ao outro, partilhando o sofá para grandes sestas. Ao fim do dia, quando aquela que D. Francisca viria a adoptar como Mãe chegava, D. Francisca partilhava a companhia com os seus dois guardiões.

Ao fim de algum tempo, D. Francisca começou a passar os dias sozinha, dado que a tal efemeridade  do seu guardião já tinha sido curada. Não que se preocupasse muito, continuava a passar os dias sozinha. Um dia, como é próprio da idade, tentou saltar o muro da sua casa mas, foi só até ao quintal do lado. Aí ficou, petrificada e sem saber como voltar, devido a altura do muro. Quando a sua guardiã a foi buscar, tremia e nunca mais voltou a experimentar tal façanha.

Preocupados com a sua solidão e por pensar que gostaria de companhia, os seus guardiões resolveram dar a mesma vida a outra criança, na esperança de se darem como irmãs. Enquanto D. Francisca era elegante, com uns lindos olhos verdes e de tez mais escura, a sua nova companhia era branca como a cal, de olhos azuis e uma pequena bolinha. No dia em que se conheceram, D. Francisca tentou comunicar com ela. Mas a sua nova companhia apenas lhe respondeu um conjunto de impropérios que muito espantaram D. Francisca, não habituada a tais comportamentos. Nesse dia apenas ficou a saber que a sua nova companhia se chamaria Laura mas, pelo seu aspecto patusco e impetuoso, teria para sempre a alcunha de Lauroca.

Ao longo dos anos, apesar da primeira reacção, foram crescendo como irmãs e como fossem irmãs de sangue pois guerreavam mas não viviam uma sem a outra. Já adolescentes, por força das circunstâncias da época, tiveram que ser submetidas a uma intervenção cirúrgica e, por ironia do destino ou talvez não, calhou no mesmo dia, na mesma instituição. A Mãe, como entretanto começaram a reconhecer, foi lá deixar as duas logo pela manhã. Tinha ficado combinado que seria o Pai a ir recolher ambas ao final do dia. Quando o Pai entrou e informou as pessoas ao que vinha, a mais pequena começou a gritar pelo Pai e só se calou quando ele chegou ao pé dela. Num quarto ao lado, o Pai foi encontrar a D. Francisca muito sossegada e calma, sem manifestar grandes afectos por nada e por ninguém.

Mesmo nos dias seguintes da recuperação de ambas, Laura andava sempre de um lado para o outro e a tentar ver os pontos com que a tinham voltado a juntar os dois lados da sua pequena barriga. D. Francisca, por seu lado, manteve-se sempre recolhida seguindo as ordens dos médicos e no seu leito a recuperar.
Seguiram-se os anos e elas mantiveram sempre aquela relação próxima e inseparável mas, pautada aqui e ali por pequenas picardias tão próprias de duas irmãs. Quando a família mudou de casa para um apartamento numa torre muito grande, D. Lauroca quis conhecer tudo e se possivel todos os seus novos vizinhos. D. Francisca por seu turno apenas uns dias depois, já bem instalada, quis conhecer o que a rodeava. Mas desiludida ficou quando descobriu que os outros pisos eram iguais ao que morava e que nada mais havia de diferente.

D. Francisca e D. Lauroca nunca casaram ou tiveram filhos. Mantiveram sempre as mesmas posturas e ao final do dia ou numa sesta a meio da tarde, sempre regressaram para junto uma da outra. Com a idade D. Francisca foi-se tornando uma senhora composta, calma e muito ponderada. Não gostava de dar nas vistas e apenas mostrava carinho para sua família mais próxima. Gostava de mimar e de ser mimada, mas sempre sem grandes alaridos. Durante as festas e outros acontecimentos sociais na sua casa, resguardava-se sempre no seu quarto e só aparecia ao final junto da família mais próxima. A sua irmã, ao contrário, socializava com toda a gente e gostava de estar junto das pessoas, falando com elas e sempre pronta para comer qualquer coisa que por lá houvesse.

Quando estava na meia idade, os seus Pais adoptaram mais um membro para a família, sendo que desta vez foi um rapaz. Era imponente, alto e loiro, embora tivesse tido uma vida e adolescência complicada. Já não era nenhuma criança mas, o seu ar majestoso de Príncipe de uma qualquer casa real da Europa do Norte, escondia uma personalidade dócil e meiga que no fundo apenas queria fazer esquecer todas as agruras da vida por que tinha passado. Ao início D. Francisca ignorou-o, mantendo apenas uma relação de cortesia. D. Lauroca por seu lado, dava conta do juízo ao seu novo companheiro, D. Tobias de seu nome. Este, por seu lado, fez de tudo para se relacionar com as duas irmãs mas, nunca conseguiu verdadeiramente. Com o tempo elas foram tolerando-o e pouco mais que isso.

Um dia, chegou a família um outro rapaz. Mas este, gerado e não adoptado como a restante família. D. Francisca já uma senhora de alguma idade, inspeccionou-o dos pés à cabeça quando chegou lá a casa. Jurou defender a criança de qualquer problema e, mesmo estando a família equipada com aqueles rádios modernos em que se ouvia o que se passava no quarto do jovem morgado, corria a avisar os seus Pais sempre que o ouvia chorar.

A criança foi crescendo e passou pelas fases normais de qualquer criança mas, anos mais tarde e depois de algum afastamento, a criança desenvolveu por D. Francisca um carinho e amizade grande, prontamente correspondida. Enquanto a criança jogava com os seus jogos e as suas consolas, D. Francisca acompanhava-o como que a fazer as suas pequenas malhas ou tricot.
Quando estava a tornar-se septuagenária, D. Francisca foi ao médico para saber que sofre de uma daquelas doenças prolongadas e de cura inexistente. Até agora, não dificulta a sua capacidade motora, mas os tratamentos que sofre para manter a sua qualidade de vida deixam-na sempre um pouco atordoada. Mantém a sua vida normal, com sua irmã ao seu lado mas, quer que a deixem mais sossegada. Da família, todos sem excepção, tem recebido todo o carinho e apoio. Foi até agora e será até ao fim dos seus dias, muito acarinhada e bem tratada. E teve uma vida cheia.  
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Para quem não sabe, a Dona Francisca e a Dona Lauroca são na pratica a Kika e a Pipoca. São as gatas da nossa família, assim como o Tobias. Agora que a Kika adoeceu e não sabemos quanto tempo terá, apeteceu-me escrever este texto. Foi a primeira gata que nos adoptou, porque não somos nós que a adoptamos. Foi feliz e será, no que depender de mim, feliz até ao fim dos seus dias.

Este texto é apenas uma pequena homenagem e uma brincadeira.  



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