Não se sabe onde
nasceu D. Francisca mas, presumimos sempre que terá sido para os lados de
Caxias. Não a Caxias da Prisão nem do Estado Novo, mas a Caxias das Vivendas e
da vista sobre o Tejo.
Quando a D. Francisca
foi encontrada não sabiam que idade teria mas, seria uma criança e, naquele
tempo de tantos pudores, não verificaram se D. Francisca seria mesmo uma
menina. Tal facto só viria a ser conhecido quando D. Francisca foi levada ao
médico para que fosse observada e se concluiu que se tratava de uma jovem
donzela. Foi nesse dia que a D. Francisca foi rebatizada e recebeu a graça que
ainda hoje possui
.
Os primeiros tempos de
D. Francisca foram passadas numa casa em Lisboa, na companhia de uns dos
membros do casal que a recolheu e a tomou como sua. Mal saberiam eles que Dona
Francisca os tinha tomado como dela, em vez da crença geral. O membro desse
casal à época padecia de uma pequena enfermidade de fácil mas demorado
tratamento. Assim, durante esses primeiros tempos, faziam companhia um ao
outro, partilhando o sofá para grandes sestas. Ao fim do dia, quando aquela que
D. Francisca viria a adoptar como Mãe chegava, D. Francisca partilhava a
companhia com os seus dois guardiões.
Ao fim de algum tempo,
D. Francisca começou a passar os dias sozinha, dado que a tal efemeridade do seu guardião já tinha sido curada. Não que
se preocupasse muito, continuava a passar os dias sozinha. Um dia, como é próprio da idade, tentou saltar o muro da sua casa mas, foi só até ao quintal
do lado. Aí ficou, petrificada e sem saber como voltar, devido a altura do muro.
Quando a sua guardiã a foi buscar, tremia e nunca mais voltou a experimentar
tal façanha.
Preocupados com a sua
solidão e por pensar que gostaria de companhia, os seus guardiões resolveram
dar a mesma vida a outra criança, na esperança de se darem como irmãs. Enquanto
D. Francisca era elegante, com uns lindos olhos verdes e de tez mais escura, a
sua nova companhia era branca como a cal, de olhos azuis e uma pequena bolinha.
No dia em que se conheceram, D. Francisca tentou comunicar com ela. Mas a sua
nova companhia apenas lhe respondeu um conjunto de impropérios que muito
espantaram D. Francisca, não habituada a tais comportamentos. Nesse dia apenas
ficou a saber que a sua nova companhia se chamaria Laura mas, pelo seu aspecto
patusco e impetuoso, teria para sempre a alcunha de Lauroca.
Ao longo dos anos,
apesar da primeira reacção, foram crescendo como irmãs e como fossem irmãs de
sangue pois guerreavam mas não viviam uma sem a outra. Já adolescentes, por
força das circunstâncias da época, tiveram que ser submetidas a uma intervenção cirúrgica e, por ironia do destino ou talvez não, calhou no mesmo dia, na mesma instituição. A Mãe, como entretanto começaram a reconhecer, foi lá deixar as
duas logo pela manhã. Tinha ficado combinado que seria o Pai a ir recolher
ambas ao final do dia. Quando o Pai entrou e informou as pessoas ao que vinha,
a mais pequena começou a gritar pelo Pai e só se calou quando ele chegou ao pé
dela. Num quarto ao lado, o Pai foi encontrar a D. Francisca muito sossegada e calma, sem manifestar grandes afectos por nada e por ninguém.
Mesmo nos dias seguintes da recuperação de ambas, Laura andava sempre de um
lado para o outro e a tentar ver os pontos com que a tinham voltado a juntar os
dois lados da sua pequena barriga. D. Francisca, por seu lado, manteve-se
sempre recolhida seguindo as ordens dos médicos e no seu leito a recuperar.
Seguiram-se os anos e
elas mantiveram sempre aquela relação próxima e inseparável mas, pautada aqui e
ali por pequenas picardias tão próprias de duas irmãs. Quando a família mudou
de casa para um apartamento numa torre muito grande, D. Lauroca quis conhecer
tudo e se possivel todos os seus novos vizinhos. D. Francisca por seu turno
apenas uns dias depois, já bem instalada, quis conhecer o que a rodeava. Mas
desiludida ficou quando descobriu que os outros pisos eram iguais ao que morava
e que nada mais havia de diferente.
D. Francisca e D.
Lauroca nunca casaram ou tiveram filhos. Mantiveram sempre as mesmas posturas e
ao final do dia ou numa sesta a meio da tarde, sempre regressaram para junto
uma da outra. Com a idade D. Francisca foi-se tornando uma senhora composta,
calma e muito ponderada. Não gostava de dar nas vistas e apenas mostrava
carinho para sua família mais próxima. Gostava de mimar e de ser mimada, mas
sempre sem grandes alaridos. Durante as festas e outros acontecimentos sociais
na sua casa, resguardava-se sempre no seu quarto e só aparecia ao final junto
da família mais próxima. A sua irmã, ao contrário, socializava com toda a gente
e gostava de estar junto das pessoas, falando com elas e sempre pronta para
comer qualquer coisa que por lá houvesse.
Quando estava na meia
idade, os seus Pais adoptaram mais um membro para a família, sendo que desta
vez foi um rapaz. Era imponente, alto e loiro, embora tivesse tido uma vida e adolescência
complicada. Já não era nenhuma criança mas, o seu ar majestoso de Príncipe de
uma qualquer casa real da Europa do Norte, escondia uma personalidade dócil e
meiga que no fundo apenas queria fazer esquecer todas as agruras da vida por
que tinha passado. Ao início D. Francisca ignorou-o, mantendo apenas uma
relação de cortesia. D. Lauroca por seu lado, dava conta do juízo ao seu novo
companheiro, D. Tobias de seu nome. Este, por seu lado, fez de tudo para se
relacionar com as duas irmãs mas, nunca conseguiu verdadeiramente. Com o tempo
elas foram tolerando-o e pouco mais que isso.
Um dia, chegou a família
um outro rapaz. Mas este, gerado e não adoptado como a restante família. D.
Francisca já uma senhora de alguma idade, inspeccionou-o dos pés à cabeça quando
chegou lá a casa. Jurou defender a criança de qualquer problema e, mesmo
estando a família equipada com aqueles rádios modernos em que se ouvia o que se
passava no quarto do jovem morgado, corria a avisar os seus Pais sempre que o
ouvia chorar.
A criança foi
crescendo e passou pelas fases normais de qualquer criança mas, anos mais tarde
e depois de algum afastamento, a criança desenvolveu por D. Francisca um
carinho e amizade grande, prontamente correspondida. Enquanto a criança jogava
com os seus jogos e as suas consolas, D. Francisca acompanhava-o como que a
fazer as suas pequenas malhas ou tricot.
Quando estava a
tornar-se septuagenária, D. Francisca foi ao médico para saber que sofre de uma
daquelas doenças prolongadas e de cura inexistente. Até agora, não dificulta a
sua capacidade motora, mas os tratamentos que sofre para manter a sua qualidade
de vida deixam-na sempre um pouco atordoada. Mantém a sua vida normal, com sua
irmã ao seu lado mas, quer que a deixem mais sossegada. Da família, todos sem
excepção, tem recebido todo o carinho e apoio. Foi até agora e será até ao fim
dos seus dias, muito acarinhada e bem tratada. E teve uma vida cheia.
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Para quem não sabe, a Dona Francisca e a Dona Lauroca são na
pratica a Kika e a Pipoca. São as gatas da nossa família, assim como o Tobias.
Agora que a Kika adoeceu e não sabemos quanto tempo terá, apeteceu-me escrever
este texto. Foi a primeira gata que nos adoptou, porque não somos nós que a
adoptamos. Foi feliz e será, no que depender de mim, feliz até ao fim dos seus
dias.
Este texto é apenas uma pequena homenagem e uma brincadeira.